O que é um tomista?
Às portas da festa do centenário da morte de Santo Tomás, seguiu-se uma restauração e um rejuvenescimento do tomismo, que todos participamos e aplaudimos, graças ao impulso gigantesco do grande Leão XIII, continuado por seus sucessores no Trono Pontifício e seguido pela docilidade e pelos esforços dos católicos de boa vontade.
Será estéril o centenário de sua canonização? Se isto fosse verdade, deveria dizer-se que a vida e a glória devem ser buscadas no sepulcro e não nos altares. É dever dos católicos, singularmente dos de nossa Espanha, fazer fecundo este centenário com uma fecundidade maior que a passada, já que, segundo disse lindamente Leão XIII, são os espanhóis “qui memoriam adamant Doctoris Angelici et in quibus Thomistica philosophandi ratio sectatores ingeniosos et doctos omni tempore invenit”.
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Fr. Santiago Ramírez, O. P.
Ostenta sozinho o título de
Mestre da Ordem Dominicana.
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O santo Doutor não se contentava a buscar a Deus com a inteligência, por meio do estudo; porque Santo Tomás não era um intelectualista seco e árido, nem tampouco um místico sentimental, mas tinha um espírito sumamente equilibrado em seu entendimento e em sua vontade.
Em Santo Tomás não é possível separar sua oração de seu estudo, como não é possível separar sua sabedoria de sua santidade, pois santificando-se se fez sábio e estudando se santificou; nele não se explica sua ciência sem sua oração, nem tampouco sua oração sem sua ciência.
Se nos é lícito nos expressarmos assim, Santo Tomás é um caso típico e concreto da união e da harmonia entre a razão e a fé, entre a santidade e a ciência, entre a Filosofia e a Teologia; ele mesmo é a encarnação nata de seu próprio sistema, e por isso o primeiro tomista e assim, o tipo de tomismo puro e íntegro é o próprio Santo Tomás em pessoa.
II. Qual deve ser o espírito de um verdadeiro tomista?
Visto o espírito de Santo Tomás em si mesmo, não será difícil saber o que é um tomista. Será, pois, um tomista o que tem ou aspira a ter por inteiro o espírito o espírito de Santo Tomás, não de um modo qualquer, mas tal como o entende a Igreja.
A amplitude do espírito tomista exige que o tomista o estude todo, sendo possível, em suas próprias fontes, a imitação do Santo Doutor. Deve pois, conhecer a fundo a Sagrada Escritura e estar a par dos exegetas mais adiantados nestes últimos tempos [1]; deve dominar os Padres da Igreja, em seu aspecto doutrinal e crítico, não com a superficialidade de um simples historiador, mas com a profundidade de um teólogo; deve estar familiarizado com todos os teólogos antigos e modernos, sejam os hostis, sejam os defensores de Santo Tomás; deve saber muito bem a Filosofia antiga a de seu tempo, a sã e a falsa, para aproveitar-se daquela e impugnar esta e saber desvelar com verdade e com acerto os limites da fé e da razão; em suma, deve trabalhar por dominar tudo desde o Verbo de Deus, como Santo Tomás dominou toda a ciência de seu tempo e a fê-la servir a Deus.
Está claro – e isto não necessita dizer – que o tomista deve iniciar a se familiarizar com todas as obras do Santo Doutor, não estudando-as esporadicamente e consultando-as unicamente em casos de angústias, mas de uma maneira constante, per se.
Mas não basta limitar-se em Santo Tomás somente e negar, sistematicamente, todo o demais. O Angélico não nasceu por geração espontânea, mas foi desenvolvido desde os tempos antigos, especialmente por Santo Agostinho e por Aristóteles, enquanto a sua forma sistemática; mas de todos depende, até de seus mesmos contemporâneos; por isso, é impossível conhecer Santo Tomás em si mesmo, ignorando a tradição filosófica e teológica desde os primeiros tempos. Não construiu ele sua grandiosa síntese tendo presente todo o pensamento humano? Os blocos deste edifício foram recolhidos e polidos em grande parte pela humanidade inteira, se bem que o arquiteto foi Santo Tomás de Aquino.
O tomismo não vive no papel, mas nas inteligências, e nestas vive como alimento que deve assimilar-se, qual germe que deve desenvolver-se e frutificar. O tomista não deve transcrever, mas ampliar a Santo Tomás, depurando e comentando suas fontes, tateando e consolidando seus princípios, assimilando e aumentando suas doutrinas com os novos elementos assimilados pela contribuição de seus sucessores até os nossos dias; e uma vez feito tudo isso, aplicar o tomismo aos problemas de hoje, com segurança de êxito.
Sente-se falta do tomista verdadeiro que amplia com todas as suas forças o tomismo e o faça crescer, mas com um crescimento homogêneo e por intussuscepção, não heterogêneo nem por justaposição. Por isso é necessário digerir tudo o que vem de fora, não com medicamento e artificialmente, senão com os sucos segregados do próprio tomismo, que são por si só, bastante poderosos para fazer fermentar e produzir a digestão de qualquer alimento, por mais forte que seja, se é, claro, objetivamente digerível. Entretanto, aqui, como em todas as coisas, faz falta a discrição, para não empenhar-se em tomar alimentos maus que, no lugar de dar forças, produzem tonturas, até que se lancem imediatamente numa reação violenta: assim sucedeu com os tomistas que quiseram devorar os pratos preparados por Descartes, pelos revelacionistas, pelos ontologistas e pelos modernistas. Não tiveram mais que dois caminhos: ou tiveram queimação, caso fossem de estômago frágil, ou comeram demais; ou vomitavam, tendo que ficar de dieta durante um período, com o agravante de dever purificar-se repetidas vezes, e logo fortificarem-se com injeções de tomismo puro, até retornar a vida normal.
Porém, há de guardar-se também do vício oposto e não encerrar-se em si, sem querer tomar alimento algum, por temor de que nos vão envenenar. Tomemos, sim, as devidas precauções – e a Santa Sé assinalou várias -, mas depois há de nutrir-se bem, para ter uma vida abundante e perfeita, advertindo-se sempre que o proveito não está na proporção com que se come, mas com o que se digere, segundo disse sabiamente Balmes.
O tomista verdadeiro deve reconhecer esse campo tão trilhado da especulação tomista de sete século, tomando uma pá, joeirar essa preciosa colheita, para separar o grão da palha e deixar que o vento da crítica leve o pó. Deve, pois, começar por fazer um trabalho de limpeza e de depuração.
Alguém nos dirá, ao acabar de ler quanto temos dito, que fizer o ser um tomista perfeito algo impossível, pois ninguém chegaria lá, apenas o próprio Angélico. É verdade: uma coisa é o ideal e outra coisa é a realidade. Um só homem não pode, por si mesmo, abarcar tudo, mas deve trabalhar o possível para acercar-se deste ideal.
Depois de um estudo de conjunto, que todos podemos fazer, é preciso especializar-se e fazer monografias completas sobre pontos determinados, segundo todas as exigências do ideal tomista. Isto é possível realizar e do conjunto dessas monografias, bem feitas, sairá um tomismo completo, verdadeiramente amplo.
O mal é que muitos, vendo essa dificuldade, e querendo, porém, aparentar ser tomistas perfeitos, se contentam com tomar algumas noções de Santo Tomás, sem tê-las meditado e aprofundado bem e logo colher aqui e ali uns dados históricos, com alguma alguma observação crítica, e assim se lançam à publicidade com grande aparato e ao som de trombetas e tambores os frutos de sua elucubrações, artigos e artigos, um volume depois do outro.
Algo semelhante ocorre em geral com muitos sábios e com não poucos filósofos de nossos dias. Não têm paciência ou capacidade bastante para fazer profundas especulações, ou desprezam o rebaixar-se ao estudo consciencioso e detalhado do laboratório; e com esse espírito – que é a síntese do espírito de Santo Tomás, segundo vimos acima – deixam perder-se a causa da Filosofia e a da Ciência[2]. Não seria ruim ter um pouco mais de humildade e confessar a própria ignorância.
Aspiremos, pois, segundo os desejos da Igreja, sermos tomistas integrais e perfeitos, na vida e na doutrina: se em Santo Tomás não se poderia separar osanto e o sábio, tampouco deveriam separar-se nos tomistas. Com estes desejos e aspirações é como rezaremos em espírito e em verdade a oração da Igreja na festa de seu Doutor, que contém a síntese de todo o presente artigo:
- Deus, qui Ecclesiam tuam BEATI THOMAE Confessoris tui atque Doctoris.
a) mira eruditione clarificas
b) et sancta operatione fecundas:
- DA NOBIS, quaesumus,
a) et quae docuit intellectu conspicere,
b) et quae egit imitatione complere.
- PER CHRISTUM Dominum nostrum. Amém. Assim seja.
FR. SANTIAGO Mª RAMÍREZ, O.P.
Salamanca, 5 de febrero de 1923.
Tradução: por Allan L. Dos Santos, Ferndale, MI, EUA, set. 2013.
Texto Original: “Ciencia Tomista, Volumen 27, año 1923, pp. 164-193”, 25 setembro de 2013.
[1] NdT.: Infelizmente, não podemos dizer o mesmo dos dias atuais, exatamente por que os exegetas que temos se afastaram totalmente do espírito do Santo Doutor, ou mesmo do espírito católico.
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