Duas Cosmogonias em Face da Ciência


Por Pe. Leonel Franca, S.J.



    Dentre os problemas, que em todos os tempos, têm despertado a curiosidade investigadora do homem, nenhum há porventura, em cuja solução tanto se tenham afadigado as inteligências como o grande problema da origem das coisas. Debalde, depois de tantos milhares de anos, tentou AUGUSTO COMTE agrilhoar despoticamente a razão humana, enclausurando-a no âmbito acanhado dos problemas sensíveis: ela, filha da luz e amante da liberdade, rasgou-lhe o veto ditatorial, e hoje como ontem desprendendo o vôo livre ruma reto em busca da região serena da verdade, onde ela resplandeça, nos fenômenos sensíveis ou na sua causa invisível. 

Importância do problema

    A questão da origem das coisas é inseparável da existência de um Ser Supremo e Criador: eis o segredo de sua importância. O princípio de causalidade, base inconcussa sobre a qual se levanta todo o edifício de nossos conhecimentos, exige, ao aparecimento de um ser, uma causa pré-existente que lhe tenha dado origem, comunicando-lhe todas as perfeições de que é dotado. Assim, quando, depois dos grandes cataclismos por que passou o nosso globo, ainda em estado de formação, moveu a primeira célula viva a sua superfície, quando, milhares de anos mais tarde, apareceu o primeiro ato psicológico, imperfeito ainda e concretizado no mais rudimentar dos protestos, quando, em épocas mais recentes, cintilaram os fulgores da inteligência na primeira alma humana, a nossa razão, recusando admitir que o perfeito possa originar-se do imperfeito, o mais do menos, o tudo do nada, reclama a existência de uma causa superior, que todas estas perfeições possuísse em grau infinito, e que, num dado momento, por ela livremente escolhido, as comunicasse a seres distintos de si na efusão comunicativa de sua bondade. 



    A origem da vida, a origem do sentimento, a origem da inteligência, são outras tantas vias que nos levam aos pés do trono do Criador, e o ímpio, diante do espetáculo do universo é, mau grado seu, obrigado a repetir, no segredo de sua consciência, o de VOLTAIRE: “Lê monde m’embrasse et je ne puis songer. Que cette horloge existe et n’ait pás d’horloge”. O aparecimento de todas estas perfeições – vida, sentimento, inteligência – no tempo é hoje irrevogavelmente atestado pelas ciências experimentais e ninguém há que se atreva a negá-lo. Aí estão as estratificações geológicas e os seus fósseis, como papiros de um grande livro, a referir-nos em caracteres indeléveis a historia do nosso globo. 



    Ao lado, porém, do grande reino animado, cujo aparecimento temporário é evidente, avulta o imenso reino anorgânico em que, na beleza multiforme de seus aspectos e na variedade extrema de suas propriedades, se nos apresentam os minerais. Como substratum comum aos dois reinos, como sede em que se manifestam todas as propriedades e perfeições dos corpos, encontra-se a matéria. É desta matéria indefinível e sob cuja constituição tanto se há discutido, desta matéria que se metamorfoseia de mil maneiras diferentes e cujo aparecimento, perdendo-se na noite dos tempos, escapa à investigação de qualquer ciência experimental, que ora inquirimos a origem. Donde provém ela? Como e quando principiou a existir? Eis, senhores, a primeira questão que se nos antolha no grande problema da origem das coisas. 


Duas opiniões 

    Duas doutrinas antagonistas respondem à nossa pergunta: a doutrina católica e a doutrina materialista. Todas as outras soluções não são mais que variações dos dois grandes sistemas e a um deles, em última análise, se reduzem.

    Ensina-nos a fé católica que a matéria é criada, teve princípio, por um ato livre do Criador, que a fez não simultaneamente nem no estado em que hoje a vemos, mas sucessivamente em vários períodos largamente espaçados, abandonando à ação das forças criadas o seu ulterior desenvolvimento. A doutrina católica opõe-se a doutrina materialista. Seus adeptos, no propósito acirrado de excluir a Deus da origem do universo, a fim de expulsa-lo da consciência humana, dogmaticamente asseveram que a matéria é eterna – existiu, existe sempre, sem princípio nem fim. Fora dela não existe ser algum – ela é a mãe fecunda de tudo o que é; de seu seio indefinidamente feraz brotaram, após uma gestação longa como o infinito, a vida, o instinto e a inteligência pelos mesmos processos por que tinham pululado a princípio todas as outras energias corpóreas. Sujeita a tais fatores, imutáveis, necessários e inexoráveis, ela se vai continuamente transformando, aperfeiçoando, evoluindo numa tendência irresistível para um termo que lhe não será dado jamais atingir. 

   Tal, em duas palhetadas, o sistema cosmogônico que, em nome da ciência moderna, pretendemos encampar à turba desacantilada das inteligências ainda em flor, os HAECHEL, FEUERBACH, BÜCHNER, MOLOSCHOTT e outros. Infelizmente, nem o mérito da originalidade lhes podemos conceder. Neste ponto não fizeram senão repetir em novos termos e ouropéis o que balbuciaram DEMÓCRITO, LEUCIPO e EPICURO na Grécia, quando a filosofia ainda se achava envolvida nas faixas da infância. 

    Contra a tese materialista nos insurgimos não somente em nome da fé que nos dá a nós católicos a certeza transcendente e infalível baseada no testemunho do que é a Sabedoria Infinita, que se não engana, a Bondade Inefável, que nos não quer enganar, senão também em nome da razão, ultrajada em seus princípios e da ciência que eles, debalde, tentam arrastar à infelicidade ignominiosa de seus preconceitos. 

1ª Parte: A cosmogonia materialista é contra a razão 

   Disse que o materialismo ultraja a razão e vo-lo provo. Segui-me por um momento na análise dum ser eterno. Desta análise jorrará a luz que nos há de aclarar o caminho da verdade. 

   Um ser eterno e incriado fora do qual não existe ser algum é um ser Necessário, quero dizer, e cuja não-existência é inconcebível. Tal, certamente, não é a matéria, contingente em cada uma de suas partes, contingente no conjunto de todas elas. Todos estes seres distintos que aí vemos a povoar o mundo são dependentes uns dos outros, relativos, reciprocamente condicionados, de tal sorte que não poderia haver nenhum deles existir sem o concurso simultâneo e harmonioso dos que o condicionam; numa palavra, todos os seres que constituem o mundo material e com os quais se identifica a matéria apresentam à razão todos os caracteres de contingência, seres todos que poderiam não existir sem que nisto enxergasse a nossa inteligência o mínimo vislumbre de contradição. Eis a primeira incompatibilidade da matéria com o ser eterno. 

   Mais. O ser eterno e necessário é necessariamente infinito, não só na duração senão também na perfeição, na posse completa da plenitude do ser. Senão dizei-me: por que razão haveria de ser limitado e finito um ser necessário, por que se haveria de restringir a sua perfeição a este ou aquele grau? Porventura pela vontade onipotente de outro ser distinto? Mas então ele não seria o ser único e independente que dizem os materialistas ser a sua matéria. Acaso intrinsecamente pela sua própria essência? Mas, se esta essência é a plenitude do ser, encerra e comporta todas as perfeições possíveis, porque há de rejeitar uma delas? Inconcebível. De qualquer lado que nos viremos, emaranha-se a nossa razão em dificuldade intricadas, em flagrantes contradições e não em dificuldades intricadas, em flagrantes contradições e não nos é possível conceber num ser Eterno, Necessário e Independente que ao mesmo tempo infinito não seja e infinitamente perfeito. 

    Nem ainda é tudo. Outro atributo do ser eterno e infinito é a imutabilidade. Todo ser que mude adquire um novo estado e com ele uma perfeição que não possuía: a mutabilidade é o sigilo inconfundível dos seres imperfeitos e limitados. No ente infinito, pego insondável de todas as perfeições, não há razão alguma de movimento, nem, portanto, de mudança. A matéria, caracterizada pela mobilidade e instabilidade que todos lhe concedemos, repete, portanto, de si a infinidade eterna. 

    Terminaremos a nossa breve excursão pelos domínios da filosofia, pela análise abstrata dos conceitos: não nos foi infrutífera. Nos argumentos que esboçamos mostrou-nos a razão o absurdo da concepção materialista de um cosmos eterno e necessário em provas hauridas não no terreno incerto e movediço das ciências experimentais, mas estribados nas próprias leis do pensamento, eternas e imutáveis como imutável e eterna é a verdade de que são expressões. Qualquer inteligência mediocremente cultivada pode, nestas especulações, seguir de perto um ARISTÓTELES, o um AGOSTINHO, um PLATÃO e um BOSSUET. Pouco se nos dá, que, fechando substancialmente os olhos, digam os materialistas que não vêem a luz. É uma triste e dolorosa verdade, para nossa desventura, que a vontade do homem, nos abismos insondáveis de sua malícia, envolve não raro a inteligência de tão espessa nuvem de fumo que lhe obscurece o lume da razão natural e de todo lhe embota a agudeza de penetração. Não entremos, porém, neste conluio horrível, em que as duas faculdades espirituais do homem (inteligência e vontade) mancomunado o mais nefando dos atentados – o suicídio da consciência moral – associam-se para imprimir uma orientação errada à vida de um homem. Só um juiz infinitamente clarividente e justo pode com equidade discernir a imputabilidade e assinar a cada homem que consuma a própria perdição, o seu quinhão de responsabilidades. 

2ª Parte: A cosmogonia materialista é contra as ciências. 

   A estes argumentos peremptórios muitos materialistas, encolhendo ironicamente os ombros, contentam-se com responder: é metafísica, como se pudera existir verdadeira ciência, como se pudera travar uma discussão sem ser metafísica. 

    Desçamos, porém, a região das ciências pelas quais unicamente eles batem pé e em cuja infalibilidade juram incondicionalmente. Combatendo no campo das matemáticas e das ciências experimentais, cremos ainda ter armas suficientes para pugnar vitoriosamente contra o dogma fundamental do materialismo: a eternidade da matéria. Comecemos pela matemática. Aceitam, e com razão, os mais notáveis matemáticos que uma série infinita de números repugna: é uma contradição que decorre da noção mesma de número. Sendo este essencialmente uma coleção de unidades, que não vê o absurdo de chegar ao infinito pelo acréscimo de unidade a um número infinito? Todos conhecem a demonstração de GALILEU a este respeito, repetida e ilustrada pelo maior matemático do século XIX, na frase de BERTRAND, pelo grande sábio e maior católico, CAUCHY. Termina ele a sua demonstração afirmando que a “hipótese de uma série prolongada ao infinito arrasta contradições manifestas, e por isso deve ser rejeitada (CAUCHY, Sete lições de Física Geral). Ora, precisamente a esta hipótese e que nos leva a afirmação materialista da eternidade da matéria. Fora ela eterna, como ante o dizer deles, e as mudanças por que tem passado constituíram uma série infinita, cujo primeiro termo seria o momento atual. 

    Demos uma forma mecânica a demonstração. Afirmam os materialistas que o movimento, sendo intimamente unido à matéria, é com ela eterno, necessário, e causa de todas as transformações por que até hoje tem passado. Ora, podendo a trajetória de um movimento ser apresentada por uma linha infinita, afirmamos que, a um móvel, é impossível ter percorrido semelhante linha. Efetivamente, suponhamos por sentido inverso. Sendo o sentido uma acidentalidade no movimento que lhe não altera a espécie, a suposição é legítima. Pois bem, partindo do ponto atual B, o móvel nunca chegará a percorrer toda a linha, que, por hipótese, é infinita, sem ponto inicial A. Mas a distância de B a A é evidentemente a mesma de A a B. Se, portanto, o móvel, partindo de B, nunca chegará a A, nunca teria chegado a B se tivesse realmente partido de A, isto é, de um ponto situado no infinito. Conclusão: o mundo, que se acha atualmente no estado B de sua evolução, teve um ponto inicial de partida, seu movimento não é eterno. 

   Das matemáticas passemos à Física. Os dois grandes princípios da conservação e da degradação da energia, generalização dos dois outros princípios sobre que se baseia a Termodinâmica e conhecidas pelos nomes dos seus autores MAYER e CARNOT, podem ser considerados como os princípios fundamentais da Física moderna. Deles se colige que todo o universo tende para um estado final de equilíbrio. 

    A soma da energia atual e potencial do universo permanece constante através de todas as suas transformações. Nestas contínuas transições, porém, a energia, convertendo-se, tende a tornar-se sempre mais difusa e menos intensa: a energia química, desenvolvida no ato de uma combinação, pode manifestar-se externamente sob a forma de luz, a luz irradia calor, o calor difunde-se, e a energia primitiva, destarte, depois de passar por várias formas porque vai passando a energia há uma gradação: a ínfima de todas as formas, a menos convertível de todas é o calor, e para esta forma tende sempre, a energia nas suas transformações. É este o princípio da entropia tão bem ilustrado por W. THOMPSON, depois L. Kelvin. Assim chegará para o universo um dia em que todas as suas energias – luz, magnetismo, eletricidade, afinidade química, radioatividade e outras talvez que a natureza esconde em seu seio, terão descido ao nível mais baixo. O calor, irradiando, será igualmente distribuído por todos os corpos. A energia não será perdida, mas, assim transformada, não se poderá manifestar; a recíproca atividade dos corpos, que supõe uma desigualdade entre o ativo e o passivo, será então impossível. Um sono de morte pousará sobre o universo e o eterno silêncio dos túmulos sucederá às harmonias da grande máquina no seu eterno repouso. Para chegarmos a este estado, serão necessários séculos supranumeráveis, mas não infinitos, passará uma duração incalculável depois da qual, a tendência universal para o equilíbrio ou igualdade de potencial terá atingido o termo para o qual corremos incessantemente. 

    Ora, senhores, entre estes resultados da Física moderna e a hipótese materialista não há conciliação possível. Fôra a matéria eterna, e já de há muito devêramos ter chegado a este estado final de equilíbrio: o efeito necessário de uma causa é, necessariamente é, necessariamente, eterno. Ouçamos um dos melhores físicos modernos: “Se a matéria e o movimento foram eternos”, pondera NAVILLE, “o movimento que se quisesse tomar como ponto de partida, teria antes de si uma duração infinita. O mundo, por conseguinte, deveria ter chegado ao estado atual em um momento qualquer de sua duração, já que naquele momento teria tido o tempo necessário para chegar ao presente estado. Onde se faz entrar o pensamento da eternidade desaparece todo o ponto de partida e à ciência há mister um ponto de partida (Physique Moderne)”. Podemos, portanto, concluir com CAUCHY: “Assim, a ciência nos conduz ao que a fé nos ensina. A matéria não é eterna; e, se as divinas escrituras não nos tiveram claramente revelado esta verdade no primeiro e mais antigo de todos os livros, seríamos obrigados a admiti-la como físicos (Sete lições de Física Geral)”

   E neste parecer concertam os mais ilustres sábios modernos e não modernos (FAYE, HIRN, HERSCHEL). 

Recapitulação final 

   É tempo de concluir. Colocamos em face da razão e da ciência as duas cosmogonias antagonistas em que se resumem todas as outras: a cosmogonia mosaica, que é a católica, e a cosmogonia materialista. Não resistiram ambas igualmente que a submetemos. A primeira aparece-nos cercada dos esplendores da verdade, atestando sua origem divina; a outra, no primeiro contato da discussão, caiu pulverizada e desfeita em cinzas, como estes cadáveres que aparecem intactos ao abrir um sarcófago, para se desfazerem logo num punhado de pó informe e sem recordações ao primeiro sopro de um ser animado. 

    Existe um ser desde toda a eternidade: é este um princípio de evidência incontestável e matemática. Se supuséramos que, por um só momento, nada existiu, nenhuma coisa poderia jamais ter começado a existir, porque do nada não se pode produzir coisa alguma: ex nihilo nihil fit. Este ser eterno não pode ser a matéria limitada e contingente, mutável e imperfeita, composta e divisível, extensa no espaço e sucessiva no tempo, ela não possui nenhum dos atributos do ser eterno; as suas propriedades, as leis que lhe regem os movimentos atestam, evidentemente, a sua origem, temporal. 

   O ser eterno, Ato Puro, que envolve a existência na própria essência, ser Infinito, não sujeito às vicissitudes da mutabilidade, independente do espaço e dos tempos, isento de toda e qualquer composição, plenitude do ser, pélago sem fundo nem margens de todas as perfeições. Só tal ser Eterno e este ser é o nosso Deus. Abençoemos a ciência que assim nos leva ao trono de sua Majestade Infinita, ciência que dignifica, que ilustra a inteligência e fortalece a vontade, ciência que exalta e enaltece o homem, apontando-lhe a sublimidade de sua origem e a elevação dos seus destinos. 

*Conferência na Congregação Nossa Senhora das Vitórias, 1916. 

Fonte: Pe. Leonel Franca S. J. Obras completas (Tomo V: Alocuções e artigos II); p. 129-139. Ed. Agir, Rio, 1954.

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