"Natureza de Deus" - Parte 1 de 4

"A Criação da Luz" (Gn 1,3) por Gustave Doré

Por Régis Jolivet
Extraído da obra “O Deus dos Filósofos e dos Sábios”

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I - ATRIBUTOS DIVINOS


       1) Dedução dos atributos. - Começaremos por reunir as noções que adquirimos sobre Deus no decurso de nossa pesquisa, esforçando-nos por compreender tudo quanto acarretam relativamente à natureza divina ou seus atributos.


        Estabelecemos que Deus é, necessariamente, incorpóreo, porque é, essencialmente, um, ao contrário do corpóreo que é múltiplo, ao menos potencialmente, isto é, enquanto é suscetível de divisão.

        Deus é perfeitamente simples, pois do contrário seria como todo composto, posterior (ao menos logicamente), aos seus componentes. Não seria mais, portanto, absolutamente primeiro como deve ser o Princípio Universal.

        Deus é, absolutamente perfeito e infinito, enquanto que, possuindo o ser pela própria essência, Ele o possui, necessariamente, sem restrição nem limite.

       Deus está, portanto, pela mesma razão, presente em toda parte, por ser o Princípio Universal, e porque cousa alguma é ou age a não ser por ele.

      Deus é, absolutamente, imutável, enquanto Ato puro, princípio não-movido de tudo quanto está em transformação, plenitude perfeita de ser.

     Deus é eterno, porque tudo quanto começa a ser não é ato puro nem princípio absolutamente primeiro, nem ser perfeitamente Imutável e, nem ainda, ser por si mesmo. Tudo quanto começa a ser é dependente de outro ser que o faz ser. A eternidade de Deus é a posse ao mesmo tempo total e perfeita de uma vida sem limite, sendo, portanto, um presente imutável coexiste em todos os tempos.

        Deus é Pensamento e Razão soberana, porque, sendo Espírito puro e excluindo por tal título não somente toda a materialidade mas ainda toda a potencialidade, compreende e encerra, necessariamente, a totalidade absoluta de tudo quanto é ou pode ser. Como tal, Deus conhece, portanto, perfeitamente, a si mesmo e por si mesmo, conhecendo todo o ser enquanto fonte e princípio do ser universal. E isto em sua própria essência e por ela, como participante ou participável dos seres que chama ou pode chamar à existência.

      Deus é Vida, no sentido de que tudo quanto está nele está, constantemente, em ato, excluindo toda potencialidade. A tal título ele é Vida infinita. Deus possui em si mesmo o princípio e o fim absolutos de toda sua atividade, sem nada que o mova de fora. Possui a si mesmo absoluta, plena e eternamente. Esta vida divina é, propriamente, o ato da inteligência, porquanto, como escrevia Aristóteles (1), “o ato de inteligência é uma vida e Deus é a atualidade, isto é, a própria plenitude da inteligência. Esta atualidade tomada em si, tal é sua vida perfeita e eterna. Assim, chamamos a Deus um vivente eterno e perfeito. A vida eterna pertence, portanto, a Deus, pois que ela é o próprio Deus”.

       Deus vivo e eterno é dotado de vontade e de uma vontade absolutamente livre, pelo fato de ser absolutamente primeiro, não se lhe podendo determinar a própria vontade senão de conformidade com a sua Inteligência, que é ele mesmo. E, ainda, a vontade divina é todo-poderosa, pois que Deus, sendo absolutamente primeiro e princípio universal de todo ser, não pode encontrar, fora de si mesmo, nada que limite seu ser e poder.

       Deus é Amor, porquanto, sendo livre de agir e de criar, não pode agir e criar senão por generosidade pura e gratuita, isto é, por amor. E é também Bondade e Beleza perfeita, princípio e modelo de tudo quanto possui algo de beleza e bondade.

     Deus é Providência, no sentido de que a ordem das cousas não pode separar-se das próprias cousas, e que aquele que cria por amor não pode deixar de ter para com sua obra os sentimentos de um pai.

      2) Analogia. - Assim falamos de Deus, enumerando o que a tradição denomina "Os nomes divinos". Contudo, repete-nos constantemente São Tomás, nada sabemos de Deus ou, ao menos, não fazermos senão balbuciar, e nossa ciência de Deus apenas é plenamente defensável no ato negativo de dizer o que Deus não é.

       Deus, com efeito, segundo vimos, transcende, absolutamente, o universo. “Oceano de substância sem determinação nem limites”, dele dizia S. João Damasceno, acrescentando: “De Deus, é impossível dizer o que ele é em si mesmo, sendo mais exato falar dele pela rejeição de tudo, pois que nada é ele do que é. Não quer isto dizer que o seja ele de algum modo (pois que é o Ser por excelência, Aquele que é), mas está acima de tudo o que é, e acima do próprio ser”.

       Eis porque a negação deve acompanhar todas as nossas afirmações, não somente porque negar em Deus tudo é incompatível, absolutamente, com sua perfeição infinita (como a matéria e a corporalidade ou a sensibilidade que acarretam, como tais, uma imperfeição essencial) mas ainda porque nenhuma das perfeições que atribuímos a Deus são com ele compatíveis no sentido e modo em que se aplicam às criaturas. Possui Deus evidentemente, como Princípio primeiro do ser universal, tudo quanto há de positivo na ordem das perfeições finitas, possuindo-o, porém, segundo a expressão consagrada, eminentemente, isto é, a um grau propriamente infinito e sem nenhuma das limitações que afetam, inevitavelmente, nossas próprias perfeições. Se dizemos, por exemplo, que Deus é Pensamento, necessário é logo acrescentar que não é ele um pensamento como o nosso que procede por digressões e raciocínios e usa conceitos abstratos, mas que o Espírito ou o Pensamento divino se exerce segundo um modo radicalmente diverso do nosso, sem arrazoados, sem conceitos nem movimento. E isto mesmo, devemos confessar, não é ainda apropriar-se do pensamento divino, o qual, ultrapassando infinitamente nossos processos humanos de conhecer, escapa, como tal, a todos os nossos esforços para apreendê-lo em si mesmo. Levando ao absoluto tudo quanto há em nós de perfeição positiva, apenas concedemos à nossa ignorância uma forma mais exata e definida, tornando-se nossa ignorância, segundo famosa fórmula de Santo Agostinho, uma ignorância que a si mesma se conhece, docta ignorantia.

       É a tudo isto que chamamos método de analogia, cujo princípio fundamental é o de poder estabelecer uma relação válida (ou relação de proporção) entre seres dos quais um possui uma perfeição a título próprio e perfeito, e os demais a título secundário e limitado. Fundamenta esta proporção nossas dissertações sobre Deus conferindo-lhes um sentido. Assim, quando dizemos que Deus é bom, queremos dizer que existe certa relação ou proporção entre a Bondade essencial de Deus e a bondade imperfeita e multiforme que exercemos em nosso Mundo humano. Mas, é também esta proporção que nos convence de nossa impotência para falar de Deus com toda a exatidão, porquanto ela significa que o termo absoluto da relação, por exemplo, a bondade de Deus, é essencialmente diferente de nossa bondade. Vê-se assim que nosso conhecimento de Delis não pode valer senão na medida em que à afirmação associa-se uma negação. Ambas caminham juntas e são inseparáveis. É a própria definição desta “docta ignorantia”, de que acima falamos, conforme Santo Agostinho, pois que nos permite escapar, ao mesmo tempo, do agnosticismo, para o qual nada, absolutamente, podemos saber de Deus, nem se existe nem o que é, - e do antropomorfismo que transporta para Deus, sob seu modo deficiente e imperfeito, os atributos humanos.

         É necessário, contudo, convir em que, ao pensarmos em Deus ou dele falarmos, não nos podemos libertar de certo antropomorfismo, pelo fato de devermos, necessariamente, apelar para as imagens e conceitos tomados da nossa experiência. Mas o antropomorfismo, que a si mesmo se conhece, logo se corrige, quanto, ao menos, lhe é possível. E, além disso, seria excessivo recusar qualquer valor e utilidade a esse modo imperfeito de pensar em Deus, porquanto empresta ao nosso pensamento, que não é um pensamento angélico mas o de homem, um ponto de apoio necessário. As imagens, por mais grosseiras e miseráveis que sejam, neste caso, constituem um socorro para aqueles que as negam mas que as utilizam. Saber que elas são falazes é escapar, pelos seus próprios meios, à parcialidade e à finalidade de nosso pensamento.

     3) Imanência e transcendência. - Bastaria, a rigor, o que ficou dito, se as dificuldades arguidas pela filosofia moderna, principalmente, não nos obrigassem a examinar de mais perto o problema do que se poderia chamar a personalidade divina.

      O panteísmo, é necessário convir, representa um dos declives pelos quais mais facilmente resvala o espírito humano, pelo próprio motivo da parte de verdade que contém e de que, mais adiante, falaremos. Se as religiões, propriamente ditas, não admitiram, em geral, senão muito raramente, as concepções panteístas e, ao contrário, favoreceram a noções personalistas e mesmo antropomórficas da Divindade, o pensamento, propriamente filosófico, muitas vezes manifestou fortes tendências panteístas, tentando mesmo dar ao panteísmo forma sistemática e coerente. Um grande pensador contemporâneo, ainda que formalmente teísta (isto é, professando a natureza pessoal de um Deus absolutamente transcendente e criador do universo), declarava mesmo (erradamente porém) que “a filosofia é, essencialmente, panteísta” e que é somente a fé cristã que nos revela a personalidade de Deus (2), Com efeito, Lao-Tsé, com o seu tao ou princípio primordial, unidade e todo, o Bramanismo, com seu sincretismo panteísta, o Neo-Platonismo plotiniano, em sua composição emanatista, as teorias medievais de Averroes, de Davi de Dinant (para o qual é a matéria primeira que é Deus), de Giordano Bruno, e depois, nos tempos modernos, as filosofias de Espinosa, de Schleiermacher, de Fichte e Hegel assinalam tantas etapas e variedades de uma doutrina cuja tese essencial pode exprimir-se sob as seguintes modalidades: ou “Deus somente é real; o mundo não passa de um conjunto de manifestações ou de emanações, não tendo realidade ou substância distinta” (3) ou então “o mundo somente é real; Deus é apenas a soma de tudo quanto existe”. A. primeira forma é representada, principalmente, pelas doutrinas de Plotino e de Espinosa; a segunda é a do panteísmo materialista do qual o marxismo parece ser o tipo representativo. Em ambos os casos dir-se-á que tudo é Deus, que o mundo e Deus são somente um.

        O que faz a força do panteísmo e lhe confere constante sedução é o profundo sentimento que o anima da imanência de Deus a tudo quanto existe. É bem verdade, com efeito, de acordo com nossas precedentes observações, que Deus, sendo necessariamente Primeiro Princípio, Causa Universal, deve estar presente em tudo quanto existe, devendo mesmo estar ainda mais presente nos seres que não existem por si mesmos, pois que não existem e nem subsistem senão por efeito de um contínuo influxo do poder criador. Nada é também mais verdadeiro que dizer, com São Paulo, que “em Deus temos a vida, o movimento e o ser”. Baseia-se, assim, o panteísmo em insistir na profundeza e universalidade da imanência divina. Consiste, contudo, o seu erro em comprometer e mesmo negar a transcendência de Deus, isto é, a absoluta independência de Deus em relação ao mundo, em não compreender que o devemos conceber, por analogia (servindo-nos aqui dos termos de Leibniz), como sendo “o que o inventor é para a sua máquina, o que um príncipe é para seus súditos, e mesmo o que um pai é para os filhos” (4). A transcendência divina, se tomada em todas as suas exigências, acarreta a doutrina da criação, a saber, da livre produção por Deus de tudo o que existe e, por conseguinte, a realidade em Deus de uma Inteligência e Vontade infinitas.

     Nada disto, porém, que se torna necessário em virtude mesmo dos processos que nos conduziram a afirmar a existência de Deus, não deve, contudo, nem pode levar-nos a negar ou comprometer a imanência de Deus, igualmente necessária. Imanência e transcendência constituem dois aspectos igualmente inevitáveis de uma noção de Deus, conforme, ao mesmo tempo, às exigências da experiência e às da razão. Sem a imanência, com efeito, é Deus estranho ao universo, e não é nem infinito nem perfeito, e a idéia de Deus torna- se contraditória. Sem transcendência, torna-se Deus idêntico ao universo c, de novo, aparece ele como imperfeito, potencial e em transformação, e a noção de Deus não é menos contraditória do que no primeiro caso. Na verdade, nega-se, cada vez, implicitamente, a Deus, de modo que, como demonstrava Malebranche, todo panteísmo é, em suma, um modo de ateísmo (5).

     O que é aqui essencial é compreender, corretamente, as idéias de transcendência e imanência. Provêm, geralmente, nossas dificuldades a tal respeito de um emprego desastroso da imaginação espacial. Nem a imanência nem a transcendência se representam ou traduzem por imagens, porquanto não são de ordem material e, como dissemos, a existência e os atributos divinos ultrapassam-nos de modo infinito. A transcendência não é, por conseguinte, um além espacial mas, essencialmente, uma independência absoluta, uma auto-suficiência total, uma aseidade perfeita (aseidade sendo a propriedade do que existe por si e por virtude própria). A imanência, por sua vez, não é qualquer mescla do ser divino com as cousas criadas. Antes de sua conversão, caíra Santo Agostinho em tal erro, do qual fala em comovente página de suas Confissões, e que passamos a citar. “E vós, também, ó vida de minha vida, escreve ele dirigindo-se a Deus, eu vos concebo qual ser imenso, penetrando por todos os lados, através dos espaços infinitos, toda a massa do universo e, para além do universo, disseminado sem limites até o infinito, de sorte que a terra em si vos encerra e assim o céu e todas as cousas, e tudo isto em vós encontra seu limite, ao passo que vós não o encontrais em parte alguma. Assim, porém, como a massa do ar, desse ar que paira sobre a terra, não cria obstáculo à luz do sol nem a impede de nela penetrar, de atravessá-la sem que a rompa ou rasgue, e dela roda se impregnar, assim igualmente eu pensava que a massa do céu, do ar, do mar e da própria terra fosse para vós permeável, deixando- se por vós penetrar em todas as suas partes, grandes ou pequenas, a fim de receber Vossa presença, e que assim, quer de dentro ou de fora, vosso sopro misterioso tudo dirigisse do que haveis criado. Tais eram minhas conjeturas, não podendo imaginar cousa diversa. Estava enganado, porém. Desse modo, com efeito, uma parte maior da terra teria contido uma parte maior de vós, e uma parte menor da terra uma menor de vós conteria. Estando as cousas plenas de vós, o corpo de um elefante encerraria de vós mais que o de um passarinho, na medida em que um elefante é maior que o passarinho e maior espaço ocupasse. Assim serieis dividido entre as partes do Universo, nelas envolvendo parte de vós mesmo, grandes ou pequenas, na proporção de sua grandeza ou pequenez. Assim, porém, não se passam as cousas. Vós não me havíeis ainda iluminado as trevas” (6). Dessas trevas e desse amontoado de contradições libertou-se Santo Agostinho, compreendendo que a imanência divina não pode ser, senão um modo de presença espiritual, irredutível às presenças corporais e, por isto mesmo, infinitamente mais penetrante e envolvente.

        Necessário é, contudo, examinar de mais perto o conceito panteísta, pois que constitui o ponto crucial do problema. Este exame, além do mais, será como uma verificação ou prova dos resultados aos quais chegamos por outro lado. Teremos, com efeito, ocasião de ver que acarretam, realmente, tudo quanto neles julgamos descobrir em relação à natureza de Deus, de certezas e exigências racionais.



NOTAS

(1) ARISTÓTELES, Metafísica, L. XII, cap. VII (1.072 b 28).

(2) LACHELIER, Oeuvres, t. II, pág. 201. (Cf. LALANDRE, Vocabulaire de la Philosophie na palavra “Panthéisme”).

(3) LALANDRE, Vocabulaire technique et critique de la Philosophie na palavra “Panthéisme”.

(4) LEIBNIZ, Monadologie, § 84.

(5) Cf. MALEBRANCHE, Entretiens sur la Métaphysique, VIII, IX.

(6) SANTO AGOSTINHO, Confessions, L. VII. n. 2. trad. de Labriolle, Col. Budé. Paris, 1925. t. I. págs. 116-117.

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