"Natureza de Deus" - Parte 3 de 4



Por Régis Jolivet
Extraído da obra “O Deus dos Filósofos e dos Sábios

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III - A PERSONALIDADE DÍVINA


       1) Deus é Ser pessoal. - Devemos, assim, reconhecer que Deus, existindo, não pode ser senão o Ser infinito, radicalmente distinto do universo que criou e conserva por um ato de vontade livre e, por conseguinte, que Deus é um Ser que denominaremos pessoal por analogia com o que sabemos e sentimos por nós mesmos, isto é, Subsistente, Inteligente e Livre. Não se poderia compreender, como acima expusemos, com Descartes, Lagneau e Hamelin, que o Princípio do qual procedem, no universo, os sujeitos inteligentes e livres que somos, as almas sequiosas de verdade, de justiça e beleza que podemos e devemos tornar-nos, seja este Princípio alguma realidade impessoal, inconsciente e submetida a uma espécie de necessidade interior, a uma lei que o determina. Haveria, em tal caso, insuportável contradição.


       Por outro lado, porém, é evidente que Deus não é um Ser pessoal como nós. Não possui corpo, sendo Espírito puro. A inteligência e a vontade não são nele o que são em nós. E, mais ainda, estas propriedades que definem em nós a personalidade: inteligência, vontade e liberdade não são, realmente, distintas do Ser divino, pois que Deus é Inteligência subsistente e Vontade subsistente. Todas as distinções que a pobreza de nossa linguagem e o finito de nossa razão obrigam-nos a introduzir em nosso falar sobre Deus, não são nele senão distinções virtuais, fundadas sobre a infinita riqueza de sua essência, transformada, porém, pelo nosso pensamento conceptual em multiplicidade real. Deus, com efeito, ultrapassa-nos de modo infinito. Desse infinito, contudo, podemos apreender certo conhecimento. Por mais pobres pessoas que sejamos e submetidas a tantas servidões, somos, entretanto, pessoas, enquanto indivíduos racionais e livres. E se é verdade que as únicas existências pessoais de que temos a experiência são nossas existências humanas, somos, contudo, capazes, conhecendo a nós mesmos, de conceber até certo ponto uma vida pessoal independentemente da representação de um corpo animado. Bem sentimos que o corpo não somente não constitui a personalidade, mas ainda que lhe é uma espécie de limite e de obstáculo, ao mesmo tempo que é para ela um meio. O corpo, sob certo aspecto, é o que nos torna escravos do mundo das cousas, o que limita nossa expansão e restringe o campo de ação, afetando com um coeficiente de inércia nossa atividade voluntária de tal modo que temos, claramente, consciência de não nos rumarmos nós mesmos e de não nos possuirmos senão apegando-nos ao sentido de nosso ser espiritual, como, inversamente, verificamos que é na própria medida em que se tornam mais materiais que os seres soçobram na impersonalidade. Em resumo, define-se a personalidade pelo espírito. Se, portanto, Deus é, essencialmente, Espírito, será, essencialmente, pessoal. 

          Uma razão a mais será assim para nós o excluirmos o panteísmo. Se Deus confunde-se com o Universo não pode ser um Ente pessoal, isto é, por si. De qualquer maneira que procuremos dar uma aparência de consistência a esta concepção, o Deus-Universo é um ser composto e múltiplo, ser que se faz e desfaz, série jamais acabada, potencialidade cujo ato perfeito jamais se concretiza, número sucessivo, que nunca se sorna, ao passo que a personalidade acarreta, necessariamente e pela própria definição, a unidade interna, a posse de si mesmo e, tratando-se de Deus, esta plenitude e perfeição de inteligência e liberdade que denominamos o Ato puro.

        2) Deus é Amor. - Preciso é acrescentar, de conformidade com as luzes que deve a razão à revelação cristã, mas que o paganismo antigo (com Platão, entre outros) já havia entrevisto, que Deus é Amor e que é o Amor subsistente. Bem entendido, aqui ainda, o antropomorfismo é, ao mesmo tempo, um apóio e um risco. Ajuda- nos a pensar no amor divino, inclinando-nos, porém, ao mesmo tempo, a dar a este amor a forma do nosso amor. Ora, quando dizemos de Deus que ele é Amor, não se trata de concebê-lo como sujeito a esta paixão que, em nossa humanidade, é conjunta, por ser sensível a fenômenos corporais, a perturbações e inquietude. Deus não pode, evidentemente, estar sujeito aos movimentos de desejo e de cólera que decorrem em nós da privação e da ausência do que desejamos ou da presença do que tememos. O amor divino não conhece passividade alguma, por ser ato puro e fecundidade absoluta. Deus, que conhece em sua essência e por ela, como vimos, a infinidade de seres que poderia chamar à existência, como outras tantas participações dessa essência, ama todos esses seres como imagens, mais ou menos longínquas de si mesmo, e quando pela criação lhes dá a existência, procede aquela, tão somente, do seu amor. O próprio do amor é dar por generosidade pura c sem reserva. Deus dá e se dá por ser o Amor infinito como é o Ser infinito.

     Filósofos pagãos, como Aristóteles, não conseguiram erguer a estas alturas as suas concepções sobre Deus e, para salvar mais seguramente a imutabilidade do Ato puro, concluíram que Deus devia desconhecer o mundo. Aristóteles, contudo, hem havia compreendido que Deus devia ser a fonte primeira de todo o movimento da natureza e, singularmente, de nossas aspirações para o bem, o belo e a unidade. Todo universo, dizia ele de modo admirável, está suspenso ao Primeiro Motor (13). Nós, porém, que uma razão mais exata, esclarecida e sustentada pelas luzes do cristianismo, levou-nos à idéia da criação, como evitaríamos ligar a Deus, que é a sua fonte, todos estes movimentos interiores que nos conduzem para a virtude, a dedicação ao próximo, a caridade e a justiça, assim como todas as nossas aspirações pela posse, segura e estável, do bem absoluto, - e pensar que o Criador do Universo que é o motor primeiro de nossos corações como o é do mundo, “aquele que move o céu e as estrelas” (Dante), deve ter, ele mesmo, se podemos dizer, um coração atento ao nosso amor, e ser, propriamente, segundo outra expressão de Dante, "o Primeiro Amor"?

        Platão, sobre este ponto, teve intuições mais justas que Aristóteles, porque, seguindo-se e terminando a dialética do Banquete, dir-se-ia que ele parece entrever que amar já é amar a Deus, e que todo amor, porque comporta um impulso infinito, exigências absolutas, é uma espécie de prova experimental da existência de um Ser soberanamente amável e amante. Se, com efeito, o mundo é ininteligível sem Deus, há algo mais ininteligível ainda a saber, um Deus (lhe permanecesse radicalmente estranho ao universo, preocupado, somente, em presidir as revoluções das esferas perdidas na imensidade do espaço, um Deus geômetra, e que ignorasse, no universo. essas outras revoluções, sem comparação mais belas que os movimentos dos astros e que são as de nossas almas em torno da Lareira da luz e do amor. Sentimos, com efeito, profundamente, que nossas aspirações para o bem e a justiça absolutos não podem ter sentido a não ser que se orientem para um Ser pessoal, cujo amor vigilante percebe até o ritmo secreto de nosso coração. A atroz solidão dos espaços infinitos e o seu silêncio, de que falava Pascal. não podem renunciar para nós ao único sentimento da existência de uma energia anônima, difusa no universo, porquanto, o que queremos, de uma vontade incoercível e que constitui para nós uma outra natureza. e mesmo, cm certo sentido, nossa verdadeira natureza, pois que é, antes de tudo, pelo espírito que temos valor, é a posse estável, permanente e pessoal do Bem absoluto. Eis porque os homens não encontram tranqüilidade, nem o pensamento a verdadeira inteligibilidade, senão na certeza da existência de um Deus que seja, ao mesmo tempo, Pensamento e Amor infinitos. E é isto tudo o que queria dizer Agostinho cm um texto famoso, dirigindo-se a Deus: “Nosso coração não pode encontrar a paz senão repousando em vós”.


NOTAS

(13) Cf. ARISTÓTELES, Metafísica, L. VI, cap. VII, 1.072 b13

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