A Musa Abandonada: Por que a música é uma arte liberal Essencial?

Por Peter Kalkavage


 "O ritmo e a harmonia conseguem
penetrar os mais secretos
recantos da alma."
- Platão

         A música transcende a sala de aula, a sala de concertos e as gravações profissionais. Ela exala vida. A humanidade tem usado por muito tempo a música em todos os tipos de formas, para celebrar, lamentar, dançar, rezar, relaxar ou excitar, para cortejar, infundir coragem e aterrorizar um inimigo, para comemorar, para unir uma comunidade. Mesmo as mais primitivas sociedades são conscientes do poder da música, e vários mitos de culturas em toda parte do mundo conferem à música e aos músicos um nobre e até mesmo um divino significado. Em alguns mitos, notavelmente no diálogo Timeu de Platão, o mundo brota do poder de composição de um deus-músico.


       Que a música é uma parte vibrante da vida é especialmente claro no caso dos jovens. A maioria dos jovens aprecia a sua música favorita como seu amigo mais íntimo e seu refúgio absoluto da ansiedade e do estresse. Quando ficamos mais velhos, a música se torna inevitavelmente ligada à nostalgia. Nós, pessoas mais velhas, basta ouvirmos uma canção de nossa juventude, para sermos transportados magicamente, como se por um aroma familiar, a um tempo, um lugar, uma singularidade, ou um amor antigo. A música não apenas emite sons: ela lança um feitiço e evoca mundos. A Música não é um mero adendo à vida humana, ou um acidente histórico que poderia muito bem nunca ter acontecido, mas uma parte essencial de quem somos como seres humanos.

     Por que os jovens deveriam estudar música? Uma resposta apresenta-se com base no que eu disse até agora: A música possui um lugar central na vida dos jovens. Para muitos, a música é sua vida. O Ensino de música para o jovem é, portanto, muito mais do que transmitir informações históricas e fatos técnicos, ou ajudar os alunos a desenvolver seu talento musical. É mais do que o esforço para torná-los competentes e esteticamente refinados. Ao colocar os jovens a se envolverem em um estudo sério da música, estamos dando-lhes a oportunidade de se conhecerem melhor, tornando-os mais precisamente cientes do incrível poder que a música tem sobre eles. Além disso, como veremos, estamos dando-lhes uma oportunidade de aprofundar seus conhecimentos do mundo natural - e de nossa conexão com ele - tornando-os mais conscientes da ordem matemática que está por trás da música.


Ouvindo e cantando

      Em minhas três décadas no St. John’s College em Annapolis, Maryland, onde todos os alunos são obrigados a estudar música por dois anos, eu aprendi que eles não podem se envolver numa efetiva aprendizagem musical sem uma real experiência musical. Tal experiência se realiza de duas formas: ouvir e fazer música.

       Ouvir é uma requisito óbvio, porém é mais difícil do que parece. O que os estudantes ouvem em suas aulas de música, e o que eles devem ouvir? Deveríamos, em primeiro lugar, expôr nossos alunos a boa música na tradição clássica (Bach, Mozart, Beethoven, etc.) e depois para outros exemplos de boa música (canções folk, blues e jazz) - ampliando seus horizontes, como diz o ditado.  Mas fazer isto é um tanto difícil. Faz sentido iniciar com obras clássicas que são atraentes e bastantes curtas. Para a música instrumental, singulares movimentos de sinfonias, sonatas para piano e quartetos de cordas funcionam bem. Talvez o melhor "primeiro passo" da audição é simplesmente aquelas obras musicais possuem um começo, meio e fim. Os alunos podem ouvir uma determinada peça várias vezes, cada vez ouvindo sob algum aspecto particular do estudo: um tema recorrente, um ritmo, um momento de grande tensão, etc.

       Mas ouvir por si só não é o suficiente. Os alunos, por cantar ou tocar um instrumento, devem necessariamente perceber que a música não é um conjunto de símbolos numa página da mesma forma que meras palavras escritas podem formar um poema. Música e poesia virá a ser o que são apenas no ato de soar. O objeto do estudo musical não é o símbolo escrito, mas o evento musical - o fenômeno vivo, cuja a partitura é nada mais que a receita. Mais do que qualquer outra coisa, cantar traz a música à vida e sobrepõe a passividade que muitas vezes se dá no ato de ouvir. No canto, os alunos são o instrumento e a música. O mais importante aqui não é que os alunos cantem bem, mas que eles façam o seu melhor esforço.

         Ao cantar grandes obras corais, ainda que imperfeitamente, os alunos têm a experimentar um dos prazeres mais humanizantes da vida: o de cooperar com os outros na tentativa de formar uma bela unidade que é mais do que a soma de suas partes. Assim, os estudantes alcançam no som o ideal de uma perfeita comunidade humana - de uma perfeita amizade que preserva diferenças, mas que a torna harmoniosa. Cantar é transcender o isolamento e o egocentrismo. Essa transcendência é um dos maiores presentes de uma verdadeira educação liberal.


A conexão da música à Matemática e à Natureza

    A Música, por ser surpreendente em seu poder sobre nossas emoções e caráter, é ainda mais surpreendente porque é eminentemente capaz de ser estudada. Tradicionalmente, a música é uma das sete denominadas "Artes Liberais". Liberal, aqui, não tem nada que ver com a sua atual utilização política. Não é um sinônimo de progressista. Pelo contrário, ela é derivada do latim liber, ou seja, "livre", e é melhor associada com palavras como "libertar". As artes liberais constituem o conhecimento de que pessoas livres precisam para orientá-las em sua tomadas de decisão no lar, no trabalho, como vizinhos, e como cidadãos. O sistema das sete artes liberais foi inicialmente desenvolvido e ensinado na Idade Média e continua a influenciar fortemente a educação até nos dias de hoje. As artes liberais são divididas em Trivium ( do latin, que significa três caminhos ou vias) e Quadrivium (ou seja, quatro caminhos ou vias). O Trivium consiste nas artes da Gramática, Lógica e Retórica; o Quadrivium consiste nas artes da Aritmética, Geometria, Astronomia e Música. A primeira desenvolve as artes da linguagem, a segunda as artes de medição. Juntas, fornecem um modelo para uma assim chamada "educação liberal", cujo fim não é formar um profissional tecnicamente treinado, mas um ser humano educado.

      Como uma arte quadrivial, a música tem um elevado posicionamento que aponta para o reconhecido vínculo que a música tem com o número e natureza, e notoriamente a distingue das artes visuais. A conexão entre a música e a matemática foi estabelecida pelo lendário grego Pitágoras. Pitágoras descobriu que os intervalos musicais mais utilizados (e mais usados no canto) tinham equivalentes matemáticos inteligíveis.

      Vamos usar a oitava como um exemplo. Para o músico, notas que formam uma oitava soam iguais - a única diferença é que uma é mais aguda, ou mais grave, do que a outra. A ciência moderna nos diz que uma oitava é um intervalo musical cuja nota possui o dobro ou metade da frequência da outra nota - se uma nota tem uma frequência de 400 Hz (hertz, ou ciclos por segundo), a nota uma oitava acima dela terá uma frequência de 800 Hz e a nota uma oitava abaixo terá uma frequência de 200 Hz. Assim, a razão para uma oitava é de 2:1.

      Pitágoras descobriu essa conexão sem o conhecimento das frequências: Ele simplesmente dividiu uma corda ao meio e, para sua surpresa, ouviu que essa divisão produzia a oitava. Da mesma forma, ele descobriu que, quando uma corda possui dois terços do comprimento da outra, produzirá uma nota mais alta que forma outro intervalo musical comum, uma quinta justa (o primeiro intervalo melódico em "Brilha, Brilha, Estrelinha"). Esta descoberta - que notas que soam bem em conjunto pode ser representadas matematicamente com razões de pequenos números inteiros - era de longo alcance; ele sugeriu que a boa música não era apenas uma questão de gosto e de convenções, mas era fundamentada na própria natureza do universo físico - que poderia explicar por que os seres humanos respondem a ela. A nossa experiência sensorial de música pode, de fato, ser uma profunda, talvez inconsciente, a uma ordem inteligível: Os intervalos musicais mais comuns e cantáveis ​​podem ser relações que detectamos automaticamente. Além disso, sugeriu a possibilidade de uma física matemática. Se relações numéricas, precisas e detectáveis estão presentes nas relações entre as notas separadas por intervalos musicais comuns, então não estariam também presentes, digamos, na relação entre a distância e o tempo que leva para que um objeto caia no chão?

    É fácil e divertido, recriar a descoberta de Pitágoras através da experimentação de diferentes divisões de uma corda em um dispositivo conhecido como um sonômetro ou "medidor de som."Às vezes é chamado de monocórdio, porque você só precisa de uma corda para fazer as experiências de Pitágoras. Mas o dispositivo funciona melhor quando se tem duas cordas: uma que é dividida e a outra não, de modo que pode servir como um campo de referência. O sonômetro é muito fácil de fazer, tanto que eu descobri quando o meu filho e eu construímos um para o seu projeto de ciências do ensino médio. Tudo que você precisa é uma placa grossa, cordas de metal, alguns parafusos, duas pequenas "pontes" para ancorar as cordas em ambas as extremidades, uma pequena "ponte" móvel que é usada para dividir a corda em vários pontos e uma régua para fazer as medições . Estudantes do ensino médio podem usar este instrumento musical simples para verificar estes intervalos musicais mais comuns que certamente correspondem a proporções de pequenos números inteiros. Eles podem fazer isso de duas maneiras. Uma maneira é medir o comprimento da corda que corresponde a uma determinada relação (digamos, 3:2, ou dois terços do comprimento da corda indivisa), mova a ponte para este lugar, e depois toque o comprimento parcial resultante (o comprimento de dois terços) para se ouvir os sons do intervalo previsto (a quinta justa). A outra maneira é para os estudantes moverem a ponte em vários pontos da corda, tocando e ouvindo em cada ponto, até que atinjam o que soar como um dado intervalo e, em seguida, usar uma régua para determinar a relação na qual a corda foi dividida. A oitava é especialmente interessante devido à sua simplicidade e familiaridade. Sabendo que a sua relação é de 2:1, os estudantes podem dividir uma corda exatamente ao meio, sem precisar usar um dispositivo de medição visual. Tudo que eles têm de fazer é ouvir a divisão que soa a oitava.

     Esta simples experiência de Pitágoras é um verdadeiro deleite para os estudantes, que invariavelmente experimentam com admiração os fundamentos matemáticos da música na natureza. A experiência ajuda a sua aprendizagem de muitas de maneiras. Faz com que percebam que os intervalos musicais e a escala adquire uma definição precisa apenas com o poder da matemática (relações); que o problema prático de afinar um instrumento de cordas como uma guitarra ou um piano é um problema matemático de obter proporções diferentes para ajustar com a outra em uma escala consistente; e que a afinação que elas herdaram (o temperamento igual de 12 notas em que uma oitava é dividida em 12 semitons iguais) é o produto de uma história rica, complexa marcada por incrível engenho e laborioso esforço.


A música nos molda

      Mesmo para além desta profunda conexão com a matemática, a música é preeminente dentre as artes pela ordem e clareza, pelo caráter nitidamente definido, de seus elementos. Música nos move, às vezes, à emoção avassaladora.

      Se faz através de estruturas bem definidas, por meio de uma ordem de notas e ritmos. Não é o mero som de tambores, mas sua batida rítmica que nos desperta. Aqui nos deparamos com o paradoxo central da música, o paradoxo que define a música como um objeto digno de admiração intelectual sustentada: A música é a união do racional e irracional, da ordem e do sentimento.

    Em última análise, por exprimir sentimento, música molda todo o ser humano. Para uma compreensão adequada disto, voltemos para os gregos antigos, cuja música, longe de ser moralmente neutra, desempenhou um papel decisivo na educação moral. Na "Política" de Aristóteles termina com uma ampla discussão das propriedades morais e usos políticos da música e o efeito da música sobre as almas dos cidadãos. Na República, Platão chama a atenção para o poder que a música tinha sobre os jovens. Ele coloca ênfase especial sobre o perigo de música. A gravidade da sua crítica reforça o que nós, em nosso esforço para justificar ou defender a música, muitas vezes falhamos em reconhecer: que a música é uma grande força e, como qualquer grande força, pode ser usado para um grande bem ou um grande mal. Porque é a música tão emocionalmente poderosa, muito mais poderosa do que as artes visuais? Platão dá uma resposta possível. Na República, ele considera a educação na música a "mais soberana", porque o ritmo e a harmonia "mais do que tudo penetra na parte mais íntima da alma e se agarram a ela mais vigorosamente." Ao experimentar a música, nós não contemplamos de longe, mas ingerimos e incorporamos. Algumas formas de música, como Platão postula, são conducentes à ordem da alma e ao amor da graça e beleza; outras saciam as paixões inferiores e alimentar o desejo de desordem e auto-piedade. Estudar música como uma arte liberal dá aos alunos a oportunidade de considerar a possibilidade de que Platão tem razão - que a música não se limita a gosto e prazer, mas tem uma influência poderosa sobre quem somos e se estamos enobrecidos ou degradados.(1)

      Isto me leva à observação de que somos moldados não só pela música, mas também por nossas opiniões sobre a música. É ainda mais importante revisitar a ligação entre a música e a educação moral numa cultura como a nossa, impregnada de orgulho e vulgaridade. O estudo da música como uma arte liberal dá aos alunos uma estendida oportunidade para examinar as suas opiniões - e de confrontar as causas e os efeitos de suas paixões.


Cultivando o gosto musical

     Ao estudar música, queremos cultivar o gosto dos nossos alunos, incentivar a sua apreciação da beleza. Mas o que é essa beleza? Por que dizemos que uma ária da Flauta Mágica de Mozart ou um movimento da Nona Sinfonia de Beethoven são belos? Embora uma definição completa de beleza esteja além do escopo deste ensaio, vou arriscar em algumas observações sobre este tema.

     Começo com o velho ditado, "A beleza está nos olhos de quem vê" (ou no ouvido de quem ouve). Este ditado é tanto obviamente verdadeiro e obviamente falso. Verdadeiro porque a beleza existe apenas em relação a um sujeito receptivo: Deve parecer belo para alguém. Falso porque só de pensar que algo é belo não o faz belo - julgamentos de beleza não são relativos. Supondo que são juízos confusos de mero gosto subjetivo com juízos de gosto estético, que sempre afirmam ser objetivo e universal. Afinal, a beleza não é o mesmo que prazer. Assim como belas coisas nem sempre agradam imediatamente, os prazeres não são sempre belos. Podemos ter prazer em algo feio e rudimentar. A beleza não é um sentimento humano subjetivo, mas uma qualidade que percebemos em um objeto. A percepção vem em primeiro lugar, em seguida, a resposta emocional. A beleza pode levar-nos a surpresa.

    Atinge, penetra, até mesmo nos transforma. Isto não seria possível se a beleza viesse de nós. Beleza nos educa, levando-nos para fora de nós mesmos. Ela nos obriga a transcender o interesse e sentimento próprios.  Não nos limitamos a contemplar a beleza, mas olhamos para ela. Ao apreciarmos a beleza, admiramos o que merece ser admirado. Para cultivar o gosto é, portanto, cultivar juízo. Beleza, em suma, está no olho do espectador educado.

   Além disso, a beleza de uma grande obra musical nem sempre é imediatamente evidente. Às vezes é preciso tempo e treinamento, para perceber que ela é belíssima. Os alunos muitas vezes dizem que uma peça que não gostava no primeiro momento se tornava uma de suas favoritas ao repetir a experiência. Seu gosto mudou, não porque eles se acostumaram a algo que não gosta, mas porque uma qualidade inerente, eventualmente, tornou-se evidente para eles. Há um antigo ditado grego que diz: "coisas bonitas são difíceis." Isto é verdade para a nossa experiência da beleza, que às vezes chega até nós apenas se fazermos um esforço para ir até ela.

      Para que a beleza seja admirada, ele deve primeiro ser reconhecida. Como discutimos na seção anterior, há uma longa tradição que liga beleza e ordem, especialmente ordem matemática. O músico e matemático Edward Rothstein, em seu livro Emblems of the Mind, mostra como relações matemáticas fundamenta o belo na música. Ele escreve: "A composição é uma construção de padrões e proporções, assemelhando-se a um argumento na matemática." Relações como simetria e vários tipos de proporção são, de fato, evidente nas obras dos grandes compositores.

      Mas a matemática, embora bela em seu próprio direito, não pode explicar totalmente a beleza da música. Por si só, não pode explicar a nossa reação a uma ária de Mozart ou uma sinfonia de Beethoven. Por que essas peças continuam a atrair os ouvintes que se familiarizam com todos eles ao redor do mundo, e não apenas no Ocidente? Estas peças parecem não ter sido escritas para um país, pessoas, ou tempo. Elas são universais e pertencem a todos. Elas nos atingem com sua integridade incrível e perfeição. Tudo parece se encaixar e se aderem em um esquema cuidadosamente elaborado. A ordem não é apenas correta, como também inspirada. Com tempo e esforço, a maioria de nós pode detectar as camadas de ordem e o equilíbrio de forças no trabalho nestas peças: a arquitetura da unidade. Podemos detectar como as tensões se constroem e são sustentados, e como elas são satisfatoriamente resolvidas. Podemos até aprender a identificar os meios técnicos pelos quais estes efeitos são produzidos. Ouvimos como um tema é exposto e, em seguida, desenvolvido, como parece assumir vida própria, ocasionalmente, até mesmo parecendo sair do controle apenas para ser trazido de volta a limitação da unidade musical.

     A bela música agrada e, algumas vezes, nos desafia com sua inteligência, profundidade e complexidade. Ela não agrada no momento, mas convida re-experiência infinitas e retorno. Quanto mais escutamos, mais ouvimos. E quanto mais estudamos música, mais razão temos de considerá-la bela. A música desdobra no tempo e apresenta um deleitoso jogo de forças ou tensões. Na música, a questão da beleza procede em grande parte a esta percepção de como as forças musicais conspiram para formar uma unidade (2). Estas forças ou tensões estão em ação nas conhecidas escalas maiores e menores e nos acordes da harmonia. Grandes obras musicais exploram essas tensões ao máximo. É por isso que ambas são maximamente ordenadas e emocionalmente poderosas, por que, como se diz, são belas.


O aprendizado a partir de uma melodia simples: Scarborough Fair

      A educação musical, que visa o conhecimento real requer muita atenção aos elementos da música: notas, valores de tempo, intervalos, etc. Os alunos devem aprender a ler música e identificar corretamente as notas em uma partitura. Logo após esta "formação básica", eles devem olhar de perto como os elementos conspiram para formar unidades musicais significativas. Estas unidades não precisam ser composições impressionantes de compositores conhecidos, como Bach e Mozart - elas exigem de maneira demasiada de uma só vez. A melhor maneira de começar é com uma canção popular.

    Scarborough Fair, canção popular muito antiga que se tornou popular por Simon e Garfunkel nos anos 60, é um bom exemplo de uma melodia bonita, simples que se presta a uma análise atenta.Com devida orientação e material, mesmo os mais musicalmente ingênuos estudantes podem começar a se envolver em uma análise profunda e completa desta impressionante melodia.


      Um dos problemas para os alunos a pensar sobre música é que ela vem a nós com muita facilidade. Parece que ela está bem ali para o nosso prazer imediato. A música não levantar questões por si mesma. Uma maneira de gerar questões é com uma série de "experimentos." Tocar a melodia no piano várias vezes e fazer os alunos cantarem juntos.

        Em seguida, altere uma nota efaça com que os alunos digam, com o melhor de sua capacidade, como eles acham que a melodia mudou no som e na "sensação". Faça isso com notas diferentes na melodia e examine cada mudança em cada ocasião. Em cada ponto, pergunte: "O que aconteceu? Qual foi o efeito da mudança?" Alterar uma nota numa melodia - com efeito, rompendo uma unidade estabelecida - é uma boa maneira para obter os alunos a se tornar ciente de que existe uma unidade. O que é certo soar numa melodia vem à luz quando nós fazemos com que ela se desvie de seu caminho pretendido e soe "errado". Os alunos, em seguida, começam a perceber que a melodia é constituída de opções cuidadosamente feitas, e que uma mudança em uma parte é uma mudança no todo. Tais experiências tornam-se ainda mais reveladoras quando alteram o ritmo da melodia.

        Em seguida, os alunos devem explorar a conexão entre as notas da melodia e as palavras. Para fazer isso bem, eles devem ter acesso ao texto completo (cuja história é muito triste). Será que o som da melodia se ajusta ao significado das palavras? O que as palavras ganham em serem cantadas? Será que a melodia faz certas palavras se destacarem? Como é que o ritmo afeta o humor da música, o significado das palavras, e a história que conta?

      Finalmente, os alunos podem compor uma variação de Scarborough Fair, talvez com suas próprias letras. Neste exercício (que eu constatei que funciona lindamente na sala de aula), os alunos aprendem, através da experiência direta, que a composição envolve revisão: que certas escolhas musicais não funcionam, que algumas funcionam melhor do que outras e, mais genericamente, que um pedaço da música (como um pedaço de um texto) pode ser melhorado.

     Uma simples, conhecida canção popular é uma educação musical em si mesma. O exame de melodias simples incentiva os alunos a dar razões para o que eles sentem. Isto os libertam da opinião errada e estupidificante que uma reação à beleza se baseia unicamente no sentimento subjetivo (que a beleza é "relativa") ou no hábito (que ouvimos eventos musicais como fazemos, apenas porque temos ouvido repetidamente). Revela-se, de maneiras muito específicas, que o sentimento humano é complexo, que a nossa reação emocional a um som belo está baseada em uma percepção de ordem notavelmente precisa, embora geralmente inconsciente. Da mesma forma, o exame das melodias simples reforça a confiança que a análise, mesmo abstrata que possa parecer à primeira vista, pode levar-nos de volta à nossa experiência musical com renovado enlevo, um sentido mais agudo para os detalhes de um belo conjunto, e um prazer mais intenso e perspicaz. Ao analisar Scarborough Fair, temos uma idéia melhor do que é ouvir esta melodia. Nós também viemos a compreendê-la melhor e, como resultado, apreciá-la ainda mais. Tomando emprestado o famoso poema de Elizabeth Barrett Browning, é como ser capaz de "contar as maneiras" em que nós amamos alguém.


Música como uma arte libertadora

     O estudo da música possui vários objetivos. Um deles é para melhorar, através da educação, gosto estético dos alunos: para introduzi-los à verdadeira boa música em um esforço para gerar um amor por todas as coisas graciosa e bem formadas. Como um professor de música, espero que o estudo da música gere nos meus alunos o hábito de procurar as causas e os detalhes das coisas belas, e que o amor à beleza nutra o amor ao conhecimento e à verdade. Como o intelecto dos alunos são abertos ao poder da música, espero que eles vão se esforçar para imitar no seu dia-a-dia, as virtudes musicais de harmoniosidade, proporção, bom sincronismo, flexibilidade adequada ou a graça, e "tocar a nota certa" no pensamento, expressão, sentimento e ação.

   A música, como mencionei anteriormente, é uma das artes liberais tradicionais. Ela nos liberta da vulgaridade, da rigidez intelectual e da tirania de opiniões populares não examinadas sobre música e beleza. A música faz isso incentivando a comunhão humana (ao cantar), inspirando um amor de beleza que transcende a mera satisfação do desejo, fazendo-nos mais atentos aos elementos e as causas da nossa resposta emocional a beleza, e obrigando-nos testar convencional opiniões contra o padrão de nossa própria experiência.

     A Música, infelizmente, é a Musa negligenciada dos programas educacionais em toda sua extensão, do jardim de infância à faculdade. Uma razão para isso é uma falha em perceber a importância da música na educação dos jovens e na vida humana geralmente. Outra é a tendência de considerar a música como uma matéria "soft" - por uma questão de diversão ou uma vaga espécie de "apreciação musical." No entanto, outra é a opinião de que a música não é fundamental para a nossa natureza humana, mas é prerrogativa de uma elite - algo treinado ou talentoso que apenas aqueles com potencial para ser músicos profissionais necessitam de estudo. Tenho me esforçado para mostrar que nada disso é verdade.

     Se estudada como uma arte liberal (ou seja, para que o aluno venha a se tornar mais curiosos e reflexivo, e mais conscientes do poder da música) e não como uma arte (ou seja, para que o aluno se torne um músico), a música faz com que os estudantes olhem para além das distinções superficiais, a fim de buscar harmonias profundas e subjacentes ou vínculos entre coisas aparentemente remotas. Na amplitude de seu domínio, na sua união de matemática e poesia, e em seu envolvimento do ser humano completo (corpo, coração e mente), a música é uma arte libertadora essencial.


 Peter Kalkavage é professor do St. John's College em Annapolis, Maryland, desde 1977. Ele é diretor do St. John's Chorus. Dr. Kalkavage é o autor de The Logic of Desire: An Introduction to Hegel’s Phenomenology of Spirit,e produziu edições de  Timeu, Fédon, O Estadista O Banquete de Platão para a Focus Philosophical Library. Ele também é autor de dois textos que foram usados no programa de música de St. John, On the Measurement of Tones and Elements: A Workbook for Freshman Music.


NOTAS

(1) É interessante notar que a palavra grega para bela (kalos) também significa nobre, assim como a palavra para feia (aischros) também significa rudimentar.

(2) Para discussão sobre o tratamento de tons como forças, consulte o Sense of Music por Victor Zuckerkandl, Princeton University Press, 1959.

Tradução: Cristiano de Aquino Alves

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