Diabolus in Musica: Lendas e verdades sobre o trítono


Por Cristiano de Aquino Alves

      O Trítono (intervalo dissonante formado por três tons inteiros), considerado por muitos músicos ao longo dos séculos como "o intervalo do Diabo", sempre foi um dos mitos mais infundados e fantasiosos do mundo da música. Tal assunto tem levado supostos estudiosos e teóricos - até mesmo os religiosos -  a criarem histórias das mais estapafúrdias e caluniosas, como músicos sendo queimados na fogueira da Inquisição na Idade Média, que a simples entoação do trítono faria evocar o demônio, que a Igreja proibia os compositores de empregarem este intervalo em suas obras, etc. Isto não pode ser verdade pelo fato de que esta ideia cai tanto em contradição com a doutrina teológica da Igreja que se fosse verdade, estaria não só renunciando vários preceitos metafísicos acerca do mal, tão discutido e tratado pela escolástica, como também acabaria compactuando com certos princípios gnósticos que, na época ela combatia sem cessar. Mas este é um assunto deveras longo e não é o objetivo do que se pretende tratar aqui.




"O sonho de Tartini" de Louis-Léopold Boilly (1761-1845). Ilustração da lenda sobre a
Sonata "O Trinado do Diabo" de Giuseppe Tartini

        No vídeo abaixo, o músico Adam Neely explica de forma sucinta como esta lenda surgiu e foi se desenvolvendo no decorrer do tempo. Que por outro lado, excluindo o sensacionalismo calunioso contra a Igreja, este equivocado sentido simbólico contribuiu imensamente para a música com novas sonoridades que, bem aplicadas, faz germinar admiráveis obras-primas.




Link do vídeo original

        Adam Neely diz que o verso citado no Gradus ad Parnassum, - "Mi contra Fa est diabolus in Musica" - supõe ser uma espécie de regra mnemônica, para memorizar fórmulas na escola, tal como no exemplo dado por ele tão usado na língua inglesa (I before E, except after C), e nas frases usadas por alguns professores de música: "meu sol se refaz" e "fala dormir", para lembrar das posições das notas musicais nas linhas e nos espaços da clave de sol (mi/sol/si/ré/fá e fá/lá/dó/mi respectivamente). Ao mesmo tempo parece ser uma advertência para a dificuldade de se entoar aquele intervalo. Tendo em vista esta questão levantada, podemos sugerir aqui duas hipóteses, não necessariamente excludentes, a partir destas observações.

     A primeira delas é a de que a suposta regra mnemônica contida no verso possa ser um jogo com as letras iniciais das palavras para criar uma fórmula de memorização de uma regra. Era comum naquele tempo esta prática pedagógica e o exemplo mais claro dessa prática é a famosa Mão Guidoniana, usada no ensino de leitura musical, cujo nome das notas eram relacionadas a partes da mão humana.



     Deste modo, "Diabolus" pode estar se referindo ao "Durum" (Hexacorde duro) e "Musica" ao "Molle" (Hexacorde mole), concluindo então que Mi Durum (III grau do Hexacorde duro) e Fa Molle (IV grau do Hexacorde mole) geram um intervalo dissonante de difícil entoação e que para não esquecermos devemos ter este quadro em mente:

    A outra, creio ser a mais provável,  seria uma mera força de expressão devido à dificuldade e a dissonância do intervalo, assim como quando estamos num lugar muito desagradável dizemos "isso aqui é um inferno!" e outras tantas que usamos no cotidiano. O Gradus ad Parnassum foi escrito por Johann Joseph Fux em forma de um fictício diálogo entre o mestre Aloys e o discípulo Joseph (que, segundo o autor, o mestre se refere à Palestrina). Vamos ver o trecho onde se encontra o verso, no trecho em que o mestre Aloys comenta um exercício de contraponto feito por Joseph, dizendo o seguinte:


   Traduzindo:

       Aloysius: Não te preocupes com aquele erro. Não poderias evitá-lo porque tua atenção não foi ainda chamada para ele. Não te entristeças antecipadamente a respeito da escrita para mais vozes, porque a prática te tornará gradualmente mais perspicaz e habilidoso. Certamente ouviste com freqüência o tão conhecido verso: mi contra fá é o diabo na música. Este mi contra fá escreveste na progressão do sexto para o sétimo compasso através de um salto de uma quarta aumentada, ou trítono, o qual é difícil para cantar e soa mal, e pela qual razão é proibido no contraponto rigoroso. Tenhas confiança e sigas adiante do mi para o próximo modo, Fá. (1)

      O que podemos concluir com tudo isto é que ao lermos o trecho, fica mais do que evidente que se trata de advertências técnicas, não há nada ali relacionado ao plano espiritual, conjurações de magia ou coisas do tipo. Sem falar de vários exemplos do cantochão em que se faz o uso do trítono, além de Pérotin temos as obras musicais da compositora e intelectual medieval Hildegarda de Bingen, santa e doutora da Igreja. Fica assim mais um mito demolido e uma desinformação a menos para sites e revistas sensacionalistas. Sendo que, de acordo com as Escrituras, o que o diabo criou foi a mentira.


Links Relacionados

Estudo no qual Adam Neely se baseou para fazer o vídeo


Link para baixar o Gradus ad Parnassum em vários idiomas
http://imslp.org/wiki/Gradus_ad_Parnassum_(Fux%2C_Johann_Joseph)

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